18 novembro 2006

Carta sobre a beatificação de Pe. Dehon


Aos confrades SCJ

Aos membros da Família Dehoniana
Caríssimos Confrades e amigos,


A paz e o amor do Senhor Jesus estejam em seus corações!


Desejo levar a seu conhecimento algumas informações acerca da beatificação de nosso Fundador que nos pedem uma atitude de fé, de comunhão eclesial e de compromisso em nossa missão.


1. Comunicação do adiamento da beatificação de P. Dehon

Nestes últimos dias chegou-nos uma comunicação da Secretaria de Estado do Vaticano confirmando o que já tinha sido comunicado oralmente pela Congregação para a Causa dos Santos (CCS) acerca da beatificação de P. Dehon: que a beatificação dele foi “lungo dilata”, ou seja, adiada sine die.

A carta acentua que esta decisão não questiona a “luminosa” figura do Fundador nem sua “preciosa atividade apostólica”, continuada pela Congregação que ele fundou. O Papa admira tanto o Fundador quanto a Congregação.

O adiamento se deve a circunstâncias do momento, que atrapalham a beatificação, já anunciada por João Paulo II. O motivo do adiamento é a presença de algumas expressões sobre o judaísmo, encontradas nos escritos de P. Dehon e que provocaram reações negativas junto à Santa Sé e à imprensa quando sua beatificação foi anunciada.


2. Caminho interrompido

Para bem entender a situação é necessário ter presente que a CCS concluiu o processo de beatificação de P. Dehon com a leitura do Decreto sobre o milagre, na presença de João Paulo II, a 19 de abril de 2004. Fomos, em seguida, convidados a escolher a data entre as propostas de outubro daquele ano ou abril do ano seguinte. Preferimos a segunda hipótese para poder dispor de mais tempo para uma preparação espiritual do evento. O processo foi assim levado a cabo em nível eclesiástico. Tão somente uma causa externa, a morte de João Paulo II, obrigou a um adiamento da data estabelecida, 24 de abril de 2005, data da coroação do novo pontífice, Bento XVI.

Após algumas acusações de anti-semitismo, publicadas em alguns jornais, e em virtude de iniciativas de bispos e cardeais franceses, foi convocada uma reunião na Congregação para a Causa dos Santos. Nesta reunião, no dia 24.06.2006, participaram representantes da Santa Sé e dois membros da Congregação: o Superior geral e o Postulador geral. Não tendo chegado a um consenso sobre os textos em questão, o assunto foi confiado ao estudo de uma comissão de especialistas da época histórica em questão.

Tal comissão foi constituída em outubro de 2005 com a presença de dois membros indicados pela Congregação. Dita comissão, pelo que sabemos, nunca reuniu-se por completo.

Entrementes, a Congregação preparou e enviou à Santa Sé uma documentação específica sobre o tema do judaísmo nos escritos de P. Dehon. Evitamos entrar em discussões públicas, limitando-nos a informar os confrades. Desta forma, seguimos as orientações da Santa Sé de não criar obstáculos aos estudos em andamento. Desde o início desta situação anômala sempre afirmamos, e continuamos a afirmar, que para nós é mais importante esclarecer histórica e literariamente os textos contestados que chegar à beatificação. Somente após tais esclarecimentos pode-se falar da oportunidade ou conveniência do que fazer.

Após ter tentado, nos meses precedentes, um contato com a Secretaria de Estado, na qual transitava o dossiê, em setembro fomos informados pela CCS que a beatificação tinha sido adiada por tempo indeterminado. Nos contatos com o cardeal Prefeito da CCS e com o novo Secretário de Estado, reafirmamos nossa disposição de esclarecer a questão, pedindo, por outro lado, informação sobre os reais obstáculos neste caminho. A 6 de novembro passado recebemos a comunicação referida confirmando o adiamento da beatificação.


3. Em espírito de fé e de comunhão eclesial

Esta decisão não é positiva para a Congregação. Pelo fato de a beatificação já ter sido fixada, seu adiamento, sem data prevista, lança dúvidas sobre a figura e a obra de P. Dehon.

A Congregação acata a decisão com serenidade e espírito de fé. Sob a ótica da fé, compreendemos que a beatificação nada acrescenta nem tira àquilo que P. Dehon viveu e realizou na Igreja e na sociedade. Muito menos se altera sua posição perante Deus e sua solidariedade pela Congregação no âmbito da comunhão dos santos. Sua beatificação nos ajudaria a situá-lo como modelo e intercessor.

Ao aprovar nossa Congregação, a Igreja havia já reconhecido em P. Dehon um instrumento do espírito para enriquecer a Igreja, com um novo Instituto Religioso, inspirado em sua experiência de fé e em seu projeto de vida. Agradeçamos a Deus pelo dom de P. Dehon e procuremos dar continuidade à herança dele recebida, qual tesouro capaz de renovar a Igreja e a Congregação.

De P. Dehon aprendemos a integrar na comunhão eclesial a diversidade de opiniões, papéis e tarefas. Sem lamentações, continuemos nosso trabalho a serviço do Evangelho, nesta Igreja que amamos. A comunhão eclesial, o Sint Unum, tão caro a P. Dehon, tem mais valor que a beatificação. Nesta comunhão queremos procurar a verdade, mesmo porque, sem esta, não existe unidade.


4. Buscando a verdade na honestidade

Neste sentido, compreendemos a dificuldade em ler os escritos de P. Dehon, abordando temas sensíveis aos tempos atuais, como o racismo e o anti-semitismo. Temos consciência dos limites de P. Dehon, como a falta de uma crítica acurada das fontes que ele cita e o uso de algumas expressões preconceituosas em uso na época.

Não podemos aceitar, porém, como verdadeiras as acusações de anti-semitismo e racismo tais como foram publicadas na imprensa e usadas na argumentação de pessoas da Igreja. Tais acusações não respeitam os princípios elementares do contexto histórico, nem o conjunto do pensamento de P. Dehon e ignoram textos importantes sobre o mesmo assunto.

Necessário se faz lembrar que o objeto de seu pensamento não são os judeus e maçons enquanto tais, que ele cita em lado a lado, muitas vezes, mas a justiça social, o que afasta uma posição racista. Pode-se discordar de sua análise da sociedade mas não é lícito deturpar seu pensamento e deixar de considerar a importância de seus escritos na definição do papel da Igreja no contexto econômico e social daquele tempo.

Sem o medo do passado e a pressão do presente, queremos prosseguir na busca da verdade histórica sobre P. Dehon, num diálogo livre com aqueles que quiserem entender, sem preconceitos, a complexidade da história. Esta é a melhor forma de evitar que sejam as circunstâncias do momento a ditar a leitura que faz do passado. Acreditamos que esta busca da verdade seja a base de todo o diálogo ecumênico e inter-religioso, no qual estamos comprometidos..


5. Sementes a germinar

As questões que criaram esta confusão são detalhes menores na vida e nos escritos de P. Dehon. A riqueza de seu patrimônio espiritual, de seu trabalho social, eclesial e missionário não á ofuscada por interpretações parciais e feitas fora de seu devido contexto.

A Congregação, nestes 130 anos de existência, fez germinar a semente lançada pelo Fundador sem qualquer sinal de racismo ou preconceito. Ao contrário, muitos de seus membros pagaram, até com a vida, a denúncia da opressão e a defesa dos perseguidos, inclusive judeus.

Na vida de P. Dehon e da Congregação, como em toda a Igreja, encontramos limitações e erros que são próprios de pessoas comprometidas com a história e que sujam os pés nos caminhos da humanidade. Olhamos esta tradição com humildade, nobreza e reconhecimento.


Este adiamento pode vir a ser um estímulo a mais para conhecer melhor P. Dehon e para renovar nossa fidelidade a ele. Este é o desafio que se nos depara. Este é um desdobramento de nossa missão. Inspiremo-nos na vida e na obra de P. Dehon para continuar no cumprimento de nossa missão na Igreja.


Fraternalmente, no Coração do Senhor,
P. José Ornelas Carvalho, scj

Superior Geral e seu Conselho

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